Durou dez dias depois da liberação do torcedor nos estádios de futebol em São Paulo para que a primeira briga fosse registrada. Ocorreu no fim da noite desta segunda-feira, invadindo a madrugada, entre são-paulinos e corintianos, horas após os times se enfrentarem no Morumbi, com vitória de 1 a 0 da equipe mandante. Havia 23 mil torcedores no estádio. Nenhum contratempo foi registrado em suas imediações e interior, afinal de contas o torcedor estava ávido pela volta presencial aos jogos. Foram 16 meses ausentes, vendo tudo pela TV, longe das arenas e do frisson de tudo o que acontece durante os 90 minutos de uma partida de futebol. Esse período sem poder acompanhar os times gerou saudade.
A volta foi pedida e negociada em meio à pandemia. O torcedor mais irresponsável até se arriscou diante da possibilidade de se contaminar com a covid para ver seu time de perto. Alguns grupos chegaram a romper barreiras em partidas decisivas nas imediações dos estádios e embarques em aeroportos. Havia uma expectativa de que o torcedor passasse a limpo seu comportamento no futebol, descobrindo o quanto a modalidade lhe era importante e que novos hábitos pudessem ser adquiridos, como o respeito aos rivais que estavam na mesma condição.
Essa reflexão, no entanto, ficou somente para a academia. O torcedor disposto a brigar continua presente, armado de paus e pedras, como foi registrado em Diadema, em frente a um terminal de ônibus, onde um são-paulino se feriu gravemente depois de ser atingido por uma paulada na cabeça. O Brasil discute esse comportamento há anos. Tudo, ou quase tudo, já foi testado e arquivado após fracassos em controlar os arruaceiros e predadores. A pandemia e o tempo longe eram mais dois ingredientes apontados para arrefecer essa vontade louca de brigar com o torcedor do time adversário.
A polícia e a segurança pública de São Paulo, aliados à Federação Paulista de Futebol, monitoram esses grupos como podem. E não podem muito fora dos estádios. É muito difícil saber onde eles vão brigar, uma vez que marcam esses encontros pelas redes sociais. Se a polícia não tiver ‘infiltrados’, provavelmente vai sempre chegar atrasada à confusão.
Esses torcedores são cada vez mais condenados pelas pessoas de bem do futebol. Federações e policiamento tentam mantê-los longe das arenas. Isso não é possível porque esses grupos estão cada vez mais presentes na vida política dos clubes, alguns até eleitos em conselhos, com cargos oficiais. Em São Paulo, desde 2016, os clássicos têm apenas um tipo de torcedor no estádio: o do time mandante. Não há visitantes. Foi o jeito torto encontrado pelas autoridades para separar esses arruaceiros e evitar depredação dentro das arenas.
O futebol perde com isso. As brigas nas imediações dos campos diminuíram. Mas elas nunca cessaram. Os torcedores se ‘modernizaram’ e começaram a marcar as brigas pela internet. Líderes das facções negociam esses locais com hora marcada. Não há regras, a não ser sem armas de fogo. Mesmo assim, não se sabe se alguns deles não chegam armados. E brigam à moda antiga, no braço e nas pauladas, como vândalos.
Torcida única nunca agradou, nem aos jogadores, como revelou pesquisa feita pelo UOL em 2018, com 106 atletas de clubes que disputaram a Série A. O levantamento comprovou que 79% eram contra a torcida única, 16% apoiam a medida e 5% se abstiveram. Segundo os relatórios do 2° Batalhão de Choque da Polícia Militar, responsável pela segurança de grandes eventos, inclusive de partidas, nos 44 clássicos antes da medida, entre os dias 22/04/2015 a 03/04/16, houve 16 brigas. Após a implementação da torcida única, no 1° período, 04/04/16 a 30/04/2017, o número de conflitos caiu para 8, redução de 50%. O batalhão informou ainda na época que o número de torcedores aumentou de 1.073.838 para 1.425.779 no mesmo período, um crescimento de 33%. E o efetivo policial dentro dos estádios diminuiu em 34%.
A internet está cheio de brigas de ruas, de pessoas que aceitam se enfrentar em troca de saber quem é melhor em confronto no braço. Algumas imagens dessas brigas mostram os ‘derrotados’ com rostos desfigurados. Lutam pelo prazer de lutar. O problema no caso dos torcedores é que eles se valem das bandeiras de seus respectivos clubes, envolvendo uma paixão nacional, que é o futebol.
BRIGAS
Essas brigas com bandeiras são mostradas nos noticiários e elas depõem contra quem quer organizar o futebol e fazer parte dele. Vale ressaltar que essa briga entre são-paulinos e corintianos em Diadema foi marcada para ocorrer em uma segunda-feira, dia que o trabalhador de bem está começando a semana. Nunca é hora de brigar, claro, mas marcar para uma segunda-feira é desafiar as autoridades. Mostra o quanto estavam a fim de se encontrar nas ruas, feito gangues de décadas passadas, em cidades sem leis e regras.
Em 2012, a Promotoria de Justiça do Consumidor de São Paulo pediu à Justiça a extinção de seis torcidas organizadas suspeitas de participar de brigas em estádios. O promotor de Justiça Roberto Senise Lisboa pediu a concessão de liminar para que os integrantes das torcidas sejam impedidos de comparecer a eventos esportivos em todo o Brasil, até o julgamento final dos processos. Na época, foi pedido o fim das torcidas organizadas Gaviões da Fiel, do Corinthians, Mancha Alviverde, do Palmeiras, Fúria Independente e Guerreiros da Tribo, ambas do Guarani, de Campinas, e Serponte e Jovem Amor Maior, ambas da Ponte Preta. Pedidos desse tipo são frequentes, mas nada parece deter os torcedores. Eles se reinventam em outros nomes e sedes.
Promotores públicos já caminharam com os torcedores para dentro do estádio. Há escolta policial para esses grupos em deslocamentos de ônibus ou a pé mesmo. Reuniões são feitas entre seus líderes com a PM e membros do Ministério Público. Quando as brigas ocorrem, as lideranças tratam de se antecipar para dizer que os envolvidos não pertencem ao grupo cadastrado. Daí a necessidade cada vez mais iminente de tratar essas pessoas não como torcedores, mas como gangues de rua, para quem as leis da sociedade devem ser aplicadas no rigor de suas leituras. Não devem mais ser encarados como torcedor de futebol.
EM CASA
Ao que parece, o futebol pós-fechamento por causa da pandemia não deve mudar nesse sentido, com mais entendimento e respeito ao outro, ao diferente, às minorias, sem preconceitos, como se imaginava durante a ausência do torcedor. As pessoas de bem continuam sendo pessoas de bem. Os briguentos também continuam sendo briguentos. Vai chegar o momento em que não se dará mais valor aos seus atos nem às suas vidas, totalmente na contramão de tantas mortes choradas pela covid-19. Por essa pequena amostra, o futebol parece não ter mudado em nada. E talvez seja mais seguro mesmo acompanhá-lo pela TV ou streaming.